No início dos anos 80

O cenário

A inércia do milagre econômico da década de setenta ainda atuava com intensidade no mercado, construía-se como nunca neste período, condomínios inteiros do tamanho de pequenas cidades, com infraestruturas caras e sofisticadas, residências fantásticas, indústrias, comércio e tudo mais que uma economia próspera permitia. Uma estrutura vertical, em geral composta pela construtora que também era a incorporadora e os empreiteiros diretos tais como empreiteiros de instalações, ar condicionado, e carpintaria. Esta estrutura vertical permitia a todos auferir lucros saudáveis e um trabalho integrado e salutar.

As empresas utilizavam-se pouco da terceirização, as decisões e o gerenciamento da obra eram executadas por poucas pessoas, de forma que sincronizar os interesses era algo relativamente fácil. Não existia a figura do gerente de projeto, do consultor e muito menos do gerente de contrato. Era basicamente o engenheiro responsável, alguns estagiários e os empreiteiros, nada mais.

No escritório

No escritório os anteprojetos ainda eram feitos à lápis sobre papel manteiga em enormes pranchetas e diversos equipamentos de desenhos tais como escalas, esquadros, transferidores, compassos e gabaritos. Somente depois de aprovados, os então anteprojetos, se tornariam projetos nas mãos de habilidosos desenhistas, que dominavam a técnica de trabalhar com nanquim sobre papel vegetal. Normógrafos, réguas, esquadros e transferidores de acrílico faziam parte do processo que era desenvolvido com muito cuidado, pois qualquer erro teria de ser habilidosamente apagado com o uso de uma Gillette, limitando a capacidade de “edição” de um projeto. O tempo era um aliado, afinal, um projeto completo de uma residência de dois pavimentos consumia entre três e sete dias pra ficar pronto.

Depois de pronto, era hora de copiar os projetos, e as plantas em papel vegetal eram seguramente acomodadas em canudos de plástico e enviadas à copiadora que as reproduziria em papel, utilizando a tecnologia de heliografia. Tudo na mais completa tranquilidade, em geral a copia em sí era rápida, e somente quando retornava da copiadora que o projeto poderia ser visto da mesma forma que os operários.
Todo o processo demandava muita atenção, o anteprojeto tinha de ser muito bem pensado, muito bem estudado, discutido e debatido, pois a etapa seguinte  demandava trabalho e dificultava o retrabalho. Sob a ótica humana, podemos dizer que os projetos antigamente eram melhores, ao menos eram mais estudados e discutidos, o que demandava um bom capital humano para um bom projeto.

Uma vez concluído o projeto existiam outras etapas no processo, se fosse um projeto para terceiros, ele simplesmente era entregue e pronto, mas se fosse para uma obra a ser realizada pela empresa, bom, ai entra em cena um novo  e completo processo. O primeiro passo era o levantamento de material, para cada prancha5 uma listagem era confeccionada a mão livre. Estas listagens recebiam preços obtidos por telefone ou até mesmo por uma visita ao fornecedor, o FAX só apareceu alguns anos depois. Depois deste processo, uma nova tarefa, utilizando calculadoras de fita era indispensável para calcular o preço de material para a obra.

Pessoas conferiam as listagens, os preços e as somas e multiplicações, um orçamento era de fato um trabalho de equipe. Somente depois de tudo calculado, os valores eram aplicados à uma proposta que já estava redigida a mão, e que era aguardada ansiosamente pela habilidosa datilografa, que em menos de uma hora produzia uma bela proposta em cinco vias. Agora o ligeiro office boy, que estava aguardando para levar a proposta ao cliente, sai em disparada para concluir o serviço, tudo na maior agilidade que a tecnologia permitia na época.

Uma vez consolidado a contratação dos serviços, era hora de preparar a obra, as listagens de material eram “xerocadas” e a equipe de projeto tratava de detalhar a execução, comparava as plantas de arquitetura, estrutura e instalação em busca de possíveis problemas que necessitariam ser eliminados. Novas cópias heliográficas eram providenciadas e um conjunto de especificações e lista de material eram encaminhados ao canteiro6 de obra. Todo o processo era sempre efetivado no papel, assim como os controles do canteiro e dos funcionários tais como folhas de ponto, cantina, e outros controles.

Nos tempos atuais

O cenário

O cenário atual ainda é motivador, o mercado da construção civil no Brasil vive um bom momento, e teve um crescimento significativo nos últimos três anos. Constrói-se como nunca, agora são condomínios compactos, apartamentos compactos, tudo compacto e bonito. As tecnologias construtivas evoluíram no sentido de apresentar um bom resultado visual com o menor custo possível, pressões ecológicas mudaram o uso de matérias primas naturais, processos construtivos e tecnologias de instalações. Hoje em dia se pensa em consumir menos gás e energia elétrica, em aproveitar a água da chuva e até mesmo em utilizar a água utilizada das pias para as privadas.

Uma estrutura administrativa horizontal dissipou o lucro, antes presente em todos os níveis, hoje em dia projetistas e consultores são responsáveis indiretos pela maximização do lucro do incorporador. Em geral a estrutura gerencial de uma obra é constituída de um incorporador, uma gerenciadora7, consultores de diversos empreiteiros terceirizados. Um gestor de projetos combina os interesses, necessidades e simultaneidade dos trabalhos desenvolvidos pelos empreiteiros. Os empreiteiros agora minimizam o pouco lucro que conseguem obter, realizando tarefas que antes não estavam no seu escopo de serviços e por esta razão, geralmente não fazem parte do seu orçamento.

Com uma quantidade enorme de empreiteiros: empreiteiros de laje, alvenaria, revestimento, instalações, telhado, pintura, paisagismo, dentre outros, é preciso gerenciar o canteiro de forma que ele não se transforme num enorme  acampamento de containers. A palavra de ordem hoje em dia no mercado da construção civil é o gerenciamento.

No escritório

Com o advento da informática e das ferramentas CAD, o projeto se tornou uma atividade praticamente solitária. Grande projetos são desenvolvidos em pequenas escrivaninhas, com computadores comuns. Anteprojeto e projeto agora são apenas diferentes versões de um mesmo arquivo, o desenho na tela já é ao mesmo tempo o estudo e o resultado. Modificar um detalhe é tão simples e rápido, que se torna mais prático consertar um erro do que pensar bem um projeto como se fazia no passado. Em termos comparativos, aquele mesmo projeto que levava de três a sete dias para ficar pronto na década de 80, hoje em dia pode ficar pronto entre 1 e 3 dias.

A tecnologia permitiu inclusive que os escritórios de engenharia ficassem menores, alias, permitiu inclusive que projetistas trabalhem em seus home offices, conectados em tempo real com outros projetistas, escritório e canteiros, a internet facilitou muito esta logística. O projetista solitário, agora não mais discute o projeto, os projetos são menos pensados, ao menos pelos humanos. Ferramentas de CAE facilitam o desenvolvimento do projeto com maior precisão, minimizando a possibilidade de erro, e de quebra ainda produzem a lista de material.

O advento tecnológico mudou a relação do profissional com o resultado do seu trabalho, hoje em dia um projetista mediano com bom conhecimento de ferramentas CAE produz resultados melhores do que um projetista experiente  mas sem intimidade com tais ferramentas, surgindo ai a figura do consultor de projetos, que é um profissional experiente que analisa o trabalho produzido pelas máquinas comandadas por hábeis operadores. O projeto agora é enviado em formato digital aos bureaus de impressão, que os imprime e entrega onde for necessário. A vantagem é que se pode enviar o arquivo digital ao bureau mais próximo do local onde as plantas impressas serão utilizadas.

O processo de orçamento esta mais simples, em sua maioria ainda se dá através do envio de planilhas com listagem de material por e-mail aos fornecedores que as preenchem e devolvem ao solicitante por e-mail. Poucas empresas de material de construção utilizam a internet de forma produtiva, mínimas são as soluções B2B que as integram com seus consumidores. Um orçamento agora é um trabalho de poucas pessoas, em geral uma única pessoa pode fechar um orçamento em pouco tempo. As propostas são produzidas com base em templates pré concebidos, que junto com os valores da planilha, permitem em pouco tempo serem elaboradas e enviadas no formato PDF aos clientes.

Uma vez consolidada a contratação, a mobilização se dá de forma semelhante ao passado, as listas de material e especificações são impressas, as plantas plotadas11 e enviadas ao canteiro, depois de analisadas em conjunto com a arquitetura, estrutura e instalações, que hoje podem habitar o mesmo arquivo e até mesmo podem ser vistas em 3D, tornando muito mais fácil o trabalho de planejamento.

As atividades são programadas e lançadas no gerenciador de projetos online, junto com todos os arquivos, projetos e demais informações que ficam acessíveis pela Internet de qualquer lugar. O computador e uma impressora é um novo elemento presente nos canteiros de obra do século XXI, obviamente conectados à Internet banda larga convencional ou 3G.

Ensaio sobre o  futuro próximo

Em um futuro bem próximo, um futuro sem papel, onde a computação será essencialmente ubíqua, podemos ter visores eletrônicos de baixo custo para exibição dos projetos e documentos no canteiro de obra. Dispositivos estes que poderão ser interativos e conectados, permitindo à um projetista e/ou engenheiro explicar o projeto e seus detalhes remotamente. O mesmo dispositivo, que deverá ser resistente à poeira e abrasão, servirá para as interações entre escritório, canteiro, e o operário dentro da construção.
Sistemas B2B sofisticados permitirão integrar o canteiro ao fornecedor, provavelmente eliminando mais etapas no processo, fornecendo em tempo real, de acordo com o gerenciador de projetos, não só materiais, mas bens processados para aplicação na obra, tais como louças sanitárias já com metais, pisos autocolantes, tijolos para encaixe sem cimento e tintas que dispensam o revestimento.

Dispositivos RFID instalados dentro dos equipamentos, tais como louças sanitárias, quadros de luz, tomadas, e até paredes, registrarão não só a data de sua instalação, como também que as instalou. Estes dispositivos terão a habilidade de interagir com a rede doméstica, ou a Internet das coisas, de forma a lembrar que determinado equipamento necessita de manutenção preventiva ou corretiva e até mesmo pode emitir um relatório completo, incluindo ai dados de consumo e eficiência. Estes mesmos dispositivos interagindo com os visores eletrônicos, darão aos operários instruções claras de sua instalação.

Os projetos e gerenciamento de projetos serão desenvolvidos de forma quase automática pelos softwares CAD e CAE, utilizando a inteligência coletiva, através de sofisticados sistemas de banco de dados que registraram o conhecimento de diversos projetistas ao redor do mundo, formando uma nova era, assim como a mecanização da revolução industrial, a computação do século XXI fará a automação dos cérebros, a socialização do conhecimento, destinando a nós pobres mortais tarefas mais criativas.


Este texto é a reprodução de um artigo que fiz sobre a trajetória da indústria da construção civil pela ótica da tecnologia da informação para a pós graduação em mídias digitais em 2008.


João Carlos Rebello Caribé

Consultor em otimização empresarial, com foco em inovação estratégica, gestão do conhecimento, gestão de projetos e processos, e micropolítica corporativa. Professor em MBA em disciplinas das áreas de gestão Empresarial, Marketing, Logística e Recursos Humanos. Mestre em Ciência da Informação pela UFRJ (PPGCI) com o tema “Algoritmização das relações sociais, criação de crenças e construção da realidade”. Empreendedor desde o início de sua carreira, foi sócio em quatro empresas desde então. Com a chegada da Internet no Brasil no final dos anos 90, desenvolveu uma empresa revolucionária, a Flash Brasil, tornando-se referência com um modelo de negócios inovador envolvendo comunidades virtuais com milhares de profissionais. Foi conselheiro para o primeiro Conselho de Coordenação da NETmundial Initiative, junto com profissionais como Jack Ma (Alibaba), Christoph Steck (Telefonica), Penny Pritzker (Departamento de Estado Americano), James Poisant (WITSA), Lu Wei (Ministro do Ciberespaço Chinês), Jean-Jacques Subrenat (EURALO), dentre outros. Também foi membro do Comitê Executivo da NCUC na ICANN, representando a sociedade civil da América Latina e Caribe. Participa da Internet Society Brasil, Coalizão Direitos na Rede, Red Latam, Comunidade Diplo, Dynamic Coalition on Network Neutrality e Global Net Neutrality Coalition, Laboratório em Rede de Humanidades Digitais (LarHud) e Estudos Críticos em Informação, Tecnologia e Organização Social (Escritos).

0 comentário

Deixe um comentário

Avatar placeholder

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.