Na década de oitenta a rede Frade Hotéis, que englobava o Hotel do Frade, Portogalo, Pousada Paraty e o Portobelo, eram gerenciados de forma independente, mas possuíam um escritório central na Joaquim Nabuco, em Ipanema. Decidiram diversificar e investiram na reforma de uma grande escuna, para transforma-la em uma espécie de hotel flutuante com 14 camarotes, com bom nível de conforto, onde os hospedes embarcavam para um passeio de fim semana com direito a cozinha internacional e entretenimento dia e noite.
A escuna adquirida pelo hotel estava sendo reformada em um estaleiro na Ilha da Conceição em Niterói, mas eles insistiam que a empresa onde eu trabalhava deveria fazer todas as instalações (infraestrutura). Naquela época, muito jovem ainda, já demonstrava interesse por projetos novos e desafiadores, e fui escalado para conduzir este projeto.
Não entendia absolutamente nada de instalação náutica, e tive de aprender rapidamente visitando diversos estaleiros e fabricantes náuticos, para compreender como funcionava cada parte de uma embarcação. A primeira constatação era de que cada tipo de embarcação tinha um conjunto diferente de equipamentos, e soluções. A falta de padrões me levou a sugerir a empresa adquirir o conjunto de normas produzidos pela American Boat & Yatch Council (ABYC), que foi indicado por um fabricante de lanchas de grande porte. Foi uma compra complicada em uma época em que ainda não tínhamos Internet.
Este foi um dos primeiros desafios, a sorte é que o estaleiro onde estávamos trabalhando era especializado em escunas e outras embarcações de madeira, o que ajudou enormemente no entendimento e solução de particularidades.
Além disso, trabalhar em uma embarcação demanda um importante detalhe que levaria qualquer engenheiro a loucura. É impossível bater um nível, uma vez que a embarcação no ancoradouro fica um pouco inclinada como na foto abaixo, e mesmo no mar está constantemente instável. O único referencial possível eram os mastros que seguramente são perpendiculares à embarcação, e todas as medidas eram referenciadas pelo mastro e quilha central.
Exemplo de barco no estaleiro
Este é um barco pequeno, uma escuna é duas a três vezes maior
Como foi o projeto
Na época ainda não existia computador, alias existia, eu mesmo tinha um TK-85, que ligava na TV e programava em Basic, mas o AutoCAD nem sonhava em existir. Todos os desenhos eram feitos à nankin ou lápis sobre papel, e os textos eram datilografados habilmente por uma datilógrafa.
A planta baixa abaixo, mostra as 14 suítes, e o dormitório da tripulação na proa com acesso independente pelo convés. Todas as suítes possuem um banheiro compartilhado entre dois dormitórios no estilo suíte canadense. O cliente optou por utilizar todas as louças (vasos sanitários e lavatórios) convencionais, ao invés dos especiais para embarcação.
Além do hall comum, acessível ao descer a escada, neste nível também se tinha acesso à cozinha e a parte técnica (motores, geradores e boilers).
A construção náutica tem algumas particularidades que tivemos de levar em consideração: Todo espaço é aproveitado, cada nicho, cada cantinho, então eram nesses lugares que teríamos de instalar os equipamentos, quadros de comando e sensores. Outro ponto é que tudo deveria ser “marinizado”, isto consistia em observar e testar cada detalhe dos equipamentos, desde as partes vitais, até os parafusos de fixação, e adaptar onde fosse necessário, para protege-los contra corrosão. Muitas vezes tivemos de substituir parafusos originais por parafusos de latão, e cada recorte em uma superfície metálica tinha de ser cuidadosamente tratado contra corrosão. E todos os equipamentos tinham de ser elevados ao grau de proteção IP57 no mínimo.
Abaixo temos um corte da embarcação, de proa a popa, onde é possível ver a caixa de coleta de detritos, as caixas de água salgada e as caixas de agua doce.
Não pretendo entrar nos detalhes técnicos do projeto, mas algumas soluções são tão interessantes que justificam serem compartilhadas.
Sistema de porão
Os cascos das embarcações de madeira não são completamente impermeáveis, a junta entre as madeiras é calafetada, mas sempre deixam passar um pouco de água. Se não houver um sistema que permita bombear esta agua para fora da embarcação, ela pode afundar. Por esta razão foi instalado um sofisticado sistema de bombas de porão, representado no lado direito da figura abaixo. O sistema é triplamente redundante, sendo uma bomba de acionamento automático, uma de acionamento manual, e uma bomba auxiliar de emergência de 12V, caso o sistema de gerador entre em pane ou a bomba automática não atue.
Sistema de esgoto
Este seguramente foi o sistema que deu mais trabalho, foi totalmente desenvolvido de forma teórica, sem nenhuma referência ou solução semelhante existente. Ele está esquematizado no lado esquerdo da figura acima.
Para reproduzir a funcionalidade de um vaso sanitário comum, onde a agua limpa varre os detritos para a tubulação e para a rede de esgoto utilizando a gravidade, tivemos de lançar mão de alguns recursos que simulam esta funcionalidade, uma vez que como a embarcação está continuamente em balanço não se pode contar com a gravidade.
O sistema de esgoto não poderia jogar os detritos diretamente no mar, pois, além da questão da poluição, poderia também atingir algum hospede que estivesse nadando próximo à embarcação. Para isso desenvolvi um sistema que pudesse armazenar os detritos produzidos ao longo de 24h. Os detritos triturados seriam armazenados em um reservatório selado, escondido no convés.
Como funciona
Em uma embarcação, água doce é um ativo limitado, então pra lavar o convés e dar descarga no esgoto primário, extraíamos agua salgada do mar, e a armazenávamos em dois reservatórios sobre cabine de comando. O processo era automático, controlado por sensores de nível que mantinham os reservatórios sempre cheios. Para evitar a sucção da pequena fauna e flora marinha, o coletor de água tinha um filtro logo na entrada.
Em termos práticos, ao acionar a descarga, o usuário aciona um dispositivo que suga, tritura e armazena os detritos no reservatório de detritos sobre o convés.
Na verdade, a engenharia por trás disso é um pouco mais complexa. Ao acionar a descarga, um “micro switch” também é acionado e ativa uma contatora ligada a um temporizador. Esta contatora abre uma válvula solenoide que permite que a água salgada entre na tubulação de esgoto, que arrasta os detritos até um reservatório intermediário batizado de caixa quebra pressão.
Esta caixa quebra pressão foi necessária para que a força de sucção da bomba não retirasse os selos hidráulicos dos vasos sanitários e também para funcionar como um pequeno reservatório temporário para evitar que própria tubulação fizesse esse papel. Esta caixa quebra pressão possuía um tubo de ventilação que permitia dispersar o mal cheiro na atmosfera e ajudar na quebra da pressão, equilibrando a pressão do sistema. O tempo de funcionamento do sistema foi regulado, após testes, em 15 segundos.
Foi instalado também uma botoeira na cabine da tripulação, que permitia acionar o sistema pelo tempo que fosse necessário, para permitir a sua limpeza quando a embarcação estivesse atracada.
A etapa final, o reservatório de detritos, cujo volume foi calculado pela média estimada de uso de todos os banheiros ao longo de 36h, possuía um sistema de alarme com dois sensores: Um que acionava uma lâmpada piloto na ponte de comando, quando o nível atingisse 50%, e outro que acionava um alarme e outra lâmpada piloto, quando este nível chegasse à 75%. Neste ponto a solução recomendada era descartar os detritos, apesar do alarme poder ser desligado, rearmando automaticamente novamente depois do descarte.
Outros sistemas
Os sistemas de bordo não se resumem aos descritos, são eles:
- Sistema elétrico
- Quadro geral
- Sistema de luz
- Sistema de bombas
- Sistema de aterramento
- Sistema de 12 volts
- Geradores
- Alimentação de atracamento
- Sistema de esgoto
- Sistema de esgoto primário (vasos sanitários)
- Sistema de esgoto secundário (chuveiro e pias)
- Sistema hidráulico
- Sistema de agua doce quente e fria
- Sistema de agua salgada
- Sistema de pressurização
- Sistema de porão
- Sistema de ar condicionado
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